terça-feira, 8 de novembro de 2011

O elefante e a honestidade

Eu queria lhe pedir honestidade.

Eu sei que ser honesto tem seu preço. Em várias oportunidades a mentira pode ter um gosto mais doce, mas fique certa que é tão doce quanto volátil.

A sinceridade de uma verdade pode lhe amargurar o paladar, mas aquilo vai lhe alimentar e você vai agradecer depois.

Eu nunca tive condições de iludir você, e ponho as coisas nesses termos porque é verdade: em todas as minhas tentativas de ser desonesto com você, fui pego em flagrante por sua mirada de raio-x. Às vezes eu achava que eram meus olhos que tinham aprendido a falar, mas com pouco tempo eu percebia que aos outros eu enganava. A você, nunca.

Então posso garantir isso: nunca fui falso com você, até mesmo quando assim eu desejava.

Por isso, por todas as outras milhões de razões que eu poderia expor, mas que prefiro que você mesma encontre dentro de si, eu lhe peço: seja honesta. Diga aquilo que eu não quero ouvir, o que eu menos quero ouvir. Fale sem reticências sobre esse elefante colorido que ocupa nossa sala todos os dias e pelo qual passamos com naturalidade disfarçada. Mate logo isso que já está morto, mas que eu, pelo amor obsessivo e doentio que tenho por você, não consigo enterrar. Haja apenas agora por quem tantas vezes moveu o mundo por você. Pelo menos dessa vez, não me deixe insistir investindo nessa empresa falida. Não me deixe mais apostar nesses dados viciados.

Eu preciso que você me livre de você.

Talvez aí, e só aí, eu possa arrumar a sala que o elefante pisoteou.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Entre copos (III)

Toda uma novela de Manoel Carlos (a frase).

Quando a morte se torna uma ótima alternativa (o momento).

Daniel (a pessoa).

     Filho da puta.

     Fi-lho-da-pu-ta!

     Era tudo o que eu conseguia pensar todos os dias de manhã quando acordava naquele quarto minúsculo que eu ainda tinha que dividir com alguma gringa fedorenta de passagem.

     Um mês. Um mês inteiro vivendo num hostel xexelento na Barão da Torre por causa de um fi-lho-da-pu-ta.

     Quando penso na cara do meu ex-locador quando fui tentar renegociar o apartamento da Galeria Alaska em que eu morava antes de me mudar pra casa de Daniel meu sangue ferveu.

     O apartamento não havia sido alugado por ele. O ex-locador nem sequer conhecia Daniel e achava que eu mesma era quem tinha desistido do lugar que agora era ocupada por uma atriz iniciante que estava com uma peça “B” em cartaz no teatro Café Pequeno.

     Desgraçada. Pegou meu apê e ainda estava na profissão que eu sonhava.

     Mas não podia desviar minha raiva pra ela. O culpado disso foi Daniel.

     Não nos falávamos desde que eu havia deixado o apartamento dele. Daniel a princípio me deixou em paz, mas depois de duas semanas não parava de ligar, mandava mensagens e eu soube por Leo, quando fui ao Eclipse pagar minha conta, que ele estava batendo ponto no bar quase todo dia.

     Morando em Ipanema ir ao Eclipse tornou-se complicado pela distância. Tudo bem que não é assim tão longe, mas a cidade está cheia de bares.

     Arranjei um emprego provisório numa livraria onde eram feitos saraus todas as quintas. Isso me possibilitou, de alguma forma, demonstrar minha veia artística interpretando alguns poemas de minha autoria ou poesias de Fernando Pessoa, de quem sempre fui fã.

     Numa noite daquelas apareceu um diretor de teatro de ar meio soturno, com uma barba tão bem feita e fina ao redor do rosto que mais parecia uma moldura naquela face branca. Me deu seu cartão e pediu pra que eu o telefonasse pra nos encontrarmos.

     Achei que minha vida começava a tomar um novo rumo. Novo bairro, novo emprego, novos bares, novas expectativas.

     Velhos fantasmas.

     Numa tarde qualquer, abri meu e-mail na livraria e, além dos e-mails de praxe de Daniel, havia um de Otávio Mendes “<sem assunto>”, mas que pra mim já era toda uma novela de Manoel Carlos com final feliz e casamento de metade dos personagens da trama.

     Esperei o expediente acabar e corri pra casa desarvorada. Abri o notebook ainda em pé e aquela tela do Windows carregando parecia uma tortura chinesa. Daniel dizia sempre pra que eu comprasse um Mac, mas de MAC pra mim bastava minha maquiagem.

     Quando enfim consegui abrir o navegador e entrar no e-mail, parecia que o inverno tinha chegado e se alojado no meu ventre. Eram cinco letras e um pedido: “Casei. Me deixe em paz”.

     Senti minha cabeça girar e vi o chão subir pra me dar um soco. Quando acordei a francesa que naquele tempo ocupava a outra cama me batia de leve no rosto e dizia alguma coisa que eu não entendia. Daniel falava francês, tinha morado em Lyon. Eu nunca me interessara pela língua, a considerava meio esnobe. Daniel casou. Como foi que ele não me avisou que ia casar? Aliás, foi ele mesmo?

     Senti a água fria sendo jogada no meu rosto e voltei a mim com um susto e a lembrança doída da realidade. Não havia sido Daniel. Foi Otávio. Afogamentos profundos e respiradas sutis. A vida sempre me tratava assim, me oferecendo uma mão pra poder ter o prazer de me dar uma rasteira.

     Levantei do chão e senti o gosto quente de ferro na boca. Sangue. Primeiro achei que havia mordido o lábio, mas a dona do hostel que estava com o copo vazio na mão e viera ao ouvir os gritos da francesa me disse com um sotaque espanhol:

- Hija, rompiste um dente.

     Quebrei um dente. Procurei o notebook para tentar reler a mensagem e me certificar de que aquilo não fora um pesadelo, mas o maldito carteiro eletrônico de má notícia jazia no chão em frangalhos. Tão despedaçado quanto um copo atirado de cima do Corcovado. Três coisas quebradas em cinco minutos: um dente, um computador, uma alma.

Minha vida era um círculo viciado. Existe um círculo viciado? Uma roleta que só lhe dá resultados negativos quando você aposta todas as suas fichas noutro número?

     Cinco letras e um pedido. Era tudo o que eu tinha, o que eu recebi em troca de toda minha devoção. “Casei”. Cinco letras. Melhor seria se ele tivesse escrito “matei”. São também cinco letras, mas pelo menos eu não teria que viver com essa dor.

     O quarto já estava apinhado de curiosos e outros estavam espreitando da porta. A espanhola dona do hostel me abanava com um leque que ela havia tirado do meio dos seios e foi quando senti o vibrar do celular. Olhei no espelho e lá estava aquele buraco. Não o do dente. Esse pouco me importava.

     O buraco que eu via era no meu peito, era na minha alma. Buracos tão escuros que me assustavam. Tão escuros que às vezes me dragam pra dentro deles.

     O olhar de Daniel. Seus dois buracos negros que sempre me engoliam, me envolviam nos seus mistérios.

     Lembrei-me do celular que vibrava incessante no bolso da farda da livraria. Era ele. Meu melhor amigo. Minha guarita.

- Monkey, até que fim...
- Daniel.
- Monkey? Que voz...
- É o Otávio.
- Natália, onde você tá?
- Barão da Torre, 107.
- Desça.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Entre copos (II)

“Play it again, Sam” (a frase).

Viver o presente com quem quer viver de passado (o momento).

Otávio (a pessoa).


     Eu não tinha feito nenhuma proposta pro locador de Natália. A verdade é que eu não fazia a menor ideia de quem era o dono do cafofo onde ela vivia.

     Mas eu sabia muito bem que ela estava desesperada e uma pessoa desesperada se apega a qualquer fio de esperança que se desenlace na sua frente.

     Já fazia uns 20 dias, eu acho, que nós estávamos morando juntos. Não foi nenhum problema pra ela se adaptar, afinal nós praticamente crescemos aqui. Meus pais eram os donos e eu assumi o apartamento da Joaquim Nabuco quando eles resolveram se mudar pra Geribá, depois de aposentados.

     Natália sempre foi a filha que minha mãe não teve e era frequente sua presença em nosso lar. A mãe dela fugiu com um nordestino que trabalhava num circo quando ela ainda era um bebê e a deixou com o pai, comerciante de materiais de construção, já com seus 50 anos quando a teve.

     Ela adorava recitar essa tragicomédia, muitas vezes com alegorias criadas por sua mente fértil, para quem qualquer um, como se a história por si só já não fosse bastante bizarra.

A verdade era que ela pouco se importava com a mãe que nunca conheceu e eu começava a achar que isso era para ela era a melhor coisa que havia em seu currículo.

     O pai de Natália era um grande amigo do meu pai e os dois tinham negócios juntos e, como éramos quase da mesma idade, era comum que o pai dela a deixasse conosco. Falecera fazia pouco tempo deixando o negócio nas mãos dela. Não preciso dizer que ela gastou até a última pataca em festa.

     A verdade é que Natália não teve boa criação. Ela era filha do mundo, apadrinhada pela vida. Flertava constantemente com o perigo. Tinha paixões tão imensas que afugentava a todos pela sua sede de viver. As pessoa não entendiam isso e a consideravam meio louca. Eu a achava brilhante. Ela era brilhante.

- Se você continuar dormindo até o meio dia nunca vai arrumar nada pra fazer na vida.
- Tá vendo porque eu não queria vir morar aqui? Você vai ficar agindo como papai?
- Não, mas eu sou seu amigo e preciso dizer a você as verdades que você não quer ver. Eu sei que você não vai voltar pra Administração, mas alguma coisa você vai acabar tendo que fazer. Por que você não vai naquela escola para atores que você viu que funcionava na Nossa Senhora com a Santa Clara?
- Francamente, D, você acha que há alguma chance de eu ser atriz nessa altura do campeonato? Eu não sou mais nenhuma boneca.
- Regina Duarte tá aí pra isso.

     Ela me arremessou uma almofada da qual eu desviei sem problemas.

- Me chamando de velha, ein?
- Monkey, tô tentando te animar. Você tem que fazer alguma coisa.
- Você podia me ajudar de verdade, né? Não é possível que não haja ninguém no jornal que não tenha contatos na TV.
- Eu já te disse que tem, mas o que você quer que eu diga? “Tem uma amiga minha formada em Administração que quer ser atriz. Não ela não tem experiência de tablado. Não, ela não toca nenhum instrumento. Dançar? Só se ela estiver muito bêbada” Você precisa começar a fazer alguma coisa pra que alguma coisa aconteça!

     Disse isso e notei que tinha tocado no seu calcanhar de Aquiles. Natália era do tipo de pessoa que tinha uma passividade agressiva monstruosa. Ela esperava muito que as coisas caíssem no seu colo. Acho que por ter sido criada por um pai já muito velho e que sempre foi mais avô do que pai... A verdade era que me impressionava uma pessoa tão inteligente e bonita nunca ter feito nada sério na vida. Ela era uma aventureira.

     Mudou de assunto como era do seu feitio quando o laço virava nó.

- Vou no Eclipse. Tá afim?
- Tenho uma pauta amanhã muito cedo pra cobrir. Bebida não vai solucionar seus problemas.
- Eu lhe fiz um convite amigável, mas você tem que tacar tudo na minha cara sempre, né? Você não sabe o que é ter um coração em frangalhos.
- Eu só quero lhe dizer que o mundo não é seu chofer. Ele não vai ficar te esperando até que seu “funeral particular” acabe e você queira enfim sair do seu “luto”. Não tente tapar o sol com a peneira. O máximo que você consegue com isso é um bronzeado quadriculado.

     Natália levantou, veio em minha direção e disse:

- Tá vendo porque eu não queria vir pra cá, Daniel? Eu nunca precisei de ninguém pra me dizer o que fazer da vida.
- Porra... Tô vendo como deu certo, ein? Tá distribuindo dólares como quem joga confete em festa de carnaval! Sem falar do total sucesso da sua vida amorosa.

     Girou nos calcanhares e falou de costas pra mim, no melhor estilo “novela mexicana do SBT na quadragésima reprise”.

- É... Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ia ser assim – ela disse enquanto catava bolsa, chave e um maço de Camel com um isqueiro preso entre o plástico e a caixinha – Você ia terminar jogando tudo na minha cara.

     Senti sua voz embargar, mas eu sabia que ela era meio que como uma égua selvagem, que precisava de rédeas curtas para ser domada.

- Monkey, é pelo seu bem. Nesse tempo que você tá aqui a única coisa que você faz é dar plantão no seu e-mail pra ver se há sinais de Otávio, fumar e ir no Eclipse. Por falar nisso, como você tá pagand...

     Virou-se e me cortou com uma fala modulada, meio mecânica, meio abusada.

- Leo tá pondo na conta e eu prometi pagar a ele assim que eu puder.
- E quando vai ser isso?
- Ah Daniel, quer saber? Não enche, bicho! Tá de saco cheio de mim? Devolve a porra do meu apartamento! Não te pedi nada disso! Você que fez questão que eu viesse pra cá.
- Você não ia ter como...

     Natália levantou a voz e eu vi as veias do seu pescoço de retesarem.

- IA! IA SIM! Nem que eu tivesse que dar pro primeiro cara que eu encontrasse na Atlântica! Porra, você me trata como se eu fosse uma completa inútil! Sabe qualé? Tô caindo fora! Não aguento mais seus olhares enviesados e essa sua compulsão por controlar a minha vida.

     Bateu a porta. Passou a chave.

     Pensei em ir atrás dela, mas seria em vão. Naquela noite ela não me daria mais nenhuma palavra. Era melhor esperar a égua selvagem vadiar pelo campo da ilusão e recolhê-la embriagada mais tarde no Eclipse, quando Leo ligasse dizendo que ela tava sentada no piano dizendo “Play it again, Sam” como costumava fazer quando estava alta e achava que Copacabana era o Marrocos.

     Natália estava se perdendo por causa de Otávio e eu não podia deixar que ele a roubasse de uma vez por todas de mim.

     Era hora de agir.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Entre copos (I)

Fecha as janelas da sua casa e apague as luzes. Eu vou te levar embora. Agora você vai viver comigo (a frase).

E então você se pega se achando a pessoa mais sozinha do mundo, em tempo de se arrebentar em choro (o momento).

Você (a pessoa).


Eu não tinha ideia de que as coisas começariam assim. Ou isso foi o prelúdio do fim? Não sei. Hoje em dia é tudo uma nuvem.

A Copacabana em que eu vivia naqueles tempos era uma névoa constante. Nessa época (assim como minha memória dos acontecimentos passados é hoje em dia) a área andava encoberta por um nevoeiro que não cessava. Os meteorologistas não achavam explicação e aquela massa compacta de vapor impregnava o bairro. Parecia que a Princesinha do Mar, tinha, enfim, voltado a viver no fundo do oceano.

Eu, que pouco entendo de clima e tempo, sabia muito bem aquilo que os cientistas não entendiam: o Rio de Janeiro ria de mim. Eu, que já vinha me sentindo sufocada, vivendo de afogamentos profundos e respiradas sutis agora literalmente vivia num mundo submarino. Era a cidade que se juntava ao coro dos que me achavam um fracasso. Aliás, eu mesma me achava ridícula.

Morando num quarto num prédio cheio de velhos e gringos, recém desempregada e, como cereja do bolo, com um coração tão despedaçado quanto um copo atirado de cima do Corcovado. Angustiada. Eu sabia que não ia adiantar procurar emprego: eu era uma péssima administradora. Eu não sei nem porque fiz aquele curso. Eu queria ser atriz. Há algo mais piegas que morar no Rio e querer ser atriz? Tem. Ser tudo isso e ainda encontrar-se devastada por um amor bandido que me roubou a alma. Queria eu ter pacto com o demônio pra que ele ficasse com minha alma. Acho que eu estaria melhor se ela fosse vendida ao capeta do que entregue nas mãos de quem eu a entreguei.

Desci e andei até a Júlio de Castilhos e lá estava o velho Eclipse que nunca fecha, com seu piano irritante e seus garçons sonolentos. Minha insônia me fez ser uma cliente assídua nas madrugadas bolorentas do meu quarto.

-Sabia que ia lhe ver aqui.

Olhei pra esquerda reconhecendo a voz, mas sem conseguir ver muito bem através da nevoa.

-Não tô bem... Não aguentava mais o quarto.
-Vamo lá em cima comigo. Fecha as janelas da sua casa e apague as luzes. Eu vou te levar embora. Agora você vai viver comigo.
- Ah é? - ri. - Obrigado por chamar aquele cafofo de casa e pela proposta, digamos, indecente. Mas eu não quero levar pra sua casa toda a minha tristeza. Iria ocupar seu apartamento inteiro.
-Eu não tô brincando.

Já estávamos frente a frente e eu via no seu olhar que não era mentira. Esses olhos tão escuros que às vezes me dragam pra dentro deles.

Daniel sempre foi meu melhor amigo, talvez a pessoa que me conhece melhor, mas, mesmo com tantos anos, ele ainda me parece uma esfinge que sempre me devora por que eu nunca consigo decifrá-lo.

-D, você sabe o quanto eu aprecio as coisas que você faz por mim e tudo o que você já fez, mas isso é demais. Fique tranquilo que eu vou arrumar um empr...
-Você não vai - disse ele antes que eu pudesse terminar - Você sabe que não vai. 
-Vamos sentar que eu tô morta. Preciso de uma dose de vodca.

Daniel e eu fomos pra nossa mesa tradicional, o mais longe possível do piano e ele pediu duas doses de vodca e suco de goiaba como bebíamos desde que começamos a beber, por volta dos nossos 15 anos.

-Quando será que a gente vai parar de passar vergonha pedindo esse mesmo drink que ninguém além de nós bebe?
-Não mude de assunto. Não deu certo, né?
-Não. Tá tão assim na minha cara?
-Não. Você continua com a mesma cara redonda de sempre. Mas eu conheço você. 
-Você me assusta.
-Você me irrita.
-E você ainda quer que eu vá morar com você.
-Eu tomei uma liberdade...

Daniel disse isso e fitou o prato e eu sabia que ele tinha feito algo que eu não ia gostar.

-Fale.
-Ofereci o dobro do que você paga ao dono do seu apê e ele deve te comunicar amanhã que não vai renovar mês que vem.

O garçom chegou com a bebida no exato momento em que eu ia dar um tabefe na mesa e por isso me contive. Quando ele saiu eu disse entre dentes.

-Você não...
-Eu sim e tá feito e se você não for morar comigo trate de buscar outro lugar pra viver porque seu cafofo tá alugado.
-D, você sabe que eu não conseguiria nenhum lugar desempregada...
-Sei, claro.
-D, seu escroto.
-Um brinde aos novos roomies.
-Txin-txin.

Daniel era assim. A luz da minha vida. Bebemos uma garrafa inteira de Wyborowa que ele pagou e foi me deixar na porta do apartamento dizendo que viria de manhã pegar as coisas comigo. Não tenho como ficar com raiva dele por muito tempo. Na verdade não posso. Não sei se outra pessoa teria tanta paciência pros meus desatinos.

Fechei a porta e parece que os pensamentos que eu tinha esquecido no Eclipse estavam me esperando acordados. A saudade fez questão de apontar o porta-retrato na cabeceira da cama. O desejo me mostrou a camisa de Otávio que eu usava de pijama. A maldade me fez ver na tela do computador que eu deixara ligado o e-mail que tinha lido antes de sair.

Sentei pra desligar o notebook e quando já estava quase me entregando à derrota de novo, meu celular vibra e era Daniel "Aborde cedo" com os constantes erros que o corretor ortográfico insistia em colocar no seu português perfeito. Fiquei esperando a mensagem seguinte porque ele sempre se corrigia e ao invés disso veio um "Te amo, monkey" apelido "carinhoso" que ele arranjou pra mim. Um raio de sol invadiu o quarto. Olhei pela janela e começava a alvorada.

O nevoeiro se dissipara.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Ao amigo Bira

A vida é um jogo injusto. É levado o que nós mais prezamos e nos quedam brinquedos rotos, roupas puídas, sapatos gastos.

Logicamente, humanos que somos, o primeiro sentimento que se descortina é a revolta. É o ódio, é a sensação de que só os vasos ruins realmente não se quebram.

Mas eu acho que é isso que temos que combater. Há de haver fé. E aqui eu não falo apenas de uma fé religiosa, mas na fé de que o futuro trará respostas, de que o sol vai brilhar. “Dias melhores pra sempre”.

É hora de juntar os cacos, de darmos as mãos, de sermos fortaleza diante do cerco.
A batalha é árdua, a guerra é longa e na unidade nós vamos vencer esses dias de pranto.
Tenho usado do conselho dado por uma amiga, sempre que penso no que aconteceu e quero chorar, lembro o quanto ele falava que ficaria feliz se me visse sorrindo... E que sorriso você tinha, Justen...


Como bom advogado que você foi, usando das palavras do professor Ivan Lira, requeira aí junto ao juiz supremo, Deus, uma liminar de conforto espiritual para aplacar nossa tristeza pela sua ida. Sobe em paz, meu amigo, que teu lugar agora é ao lado d’Ele.

Requer-se que advogue em nosso favor.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Pluripolaridade

Admiro muito quem é bipolar.

É sério. Sem brincadeira.

Deve ser moleza você lidar com apenas duas personalidades por mais adversas que elas sejam. Não tem até aqueles que dizem que opostos se atraem? E então? Do que esse povo ainda reclama?

Problema tem aqueles que, como eu, guardam dentro de si uma miríade de personas, nem sempre, gratas.
Há dias em que acordo o bom moço. Faço a cama, tomo um café saudável com frutas e iogurte, me banho e... antes de sair vejo aquela pia cheia de louça suja a me lembrar do porco selvagem que mora em mim e que foi quem chegou do trabalho na noite anterior, não querendo nada além de se refestelar no sofá e comer um gorduroso Big Tasty.

Há momentos em que me sinto o cúmulo da simpatia. Distribuo abraços e sorrisos, palavras de incentivo, vai lá, você consegue e dois segundo depois to querendo que o mundo se exploda e que os Quatro Cavaleiros do Apocalipse corram logo sobre essa terra de loucos.

Por falar em loucos, me revolta a mudança nesse novo Código Civil que tirou a poética expressão que havia no código de 1916, que em seu artigo 5º, inciso II, determina que são incapazes de exercer os atos da vida civil os loucos de todos os gêneros.

Ora, como pôde o douto legislador privar a mim e a todos os outros malucos que habitam o meu âmago de uma proteção tão magnífica? “Sabe o que é chefe, hoje to incapaz pra exercer atos da vida civil. Os loucos estão impossíveis”. Ou então “Ah amor, deixa pra amanhã que os insanos das piores categorias se manifestaram hoje e resolveram não arredar o pé do bar até que todos estejam satisfeitos”.

Pode até parecer engraçado, mas a verdade é que isso me traz problemas. Há algumas pessoas dentro de mim que são tão totalmente independentes, que nem sequer compartilham suas memórias comigo. As pessoas às vezes me contam coisas que eu fiz das quais eu realmente não me recordo e me surpreendo com a maluquice. Se me contassem sem dizer que havia sido eu (no caso um dos meus “eus”), certamente eu recriminaria certas posturas.

Penso que é por isso que sou tão tolerante com as doidices dos outros.
E, no frigir dos ovos, acho que todos nós deveríamos pensar um pouco dessa forma. A pessoa sem vergonha que mora em mim admite sem pudor esse problema de pluripolaridade, enquanto a turma mais recatada acha que deveríamos nos preservar.

Mas o time dos filósofos, este que vos escreve, pretende expor justamente essa ideia: vamos nos aceitar e aprender a perdoar os outros, pois vão haver momentos em que nós mesmos não nos reconheceremos e pode ser que aí você note que também compartilha da minha enfermidade.

Louvados sejam os loucos de todos os gêneros.


quinta-feira, 30 de junho de 2011

Bom dia não custa nada


Sou potiguar e natalense e, há alguns meses, me lancei em uma aventura em terras cariocas por força de uma oportunidade de trabalho que surgiu.
No pouco tempo (para alguns; para mim, eternidades), fiz algumas constatações, talvez pela solidão, talvez pelo tino que sempre tive em perceber detalhes.
Em Natal, e creio eu que isso valha para todo o Estado, quiçá o Nordeste inteiro, as pessoas tem um costume básico, tão singelo que passa despercebido: cumprimentarem-se.
Pois é, saudar um ao outro, por desconhecido que seja.
É o ato banal de entrar em um elevador onde já há alguém e dizer um "bom dia", um "olá" ou até mesmo um sorriso, um menear de cabeça. É uma forma de você avisar àquela pessoa que você tem ciência de que tem companhia.
Na minha cidade, quando alguém novo, de fora, aparece, prontamente há esforços de todos para que haja acolhimento, para que o forasteiro não se sinta assim. Existe um mix de vontade de receber bem com curiosidade sobre a procedência daquele estranho, de onde ele vem e do que ele faz. Acho que é o tal do calor humano, que até então eu só achei que se referisse ao imprensado de uma lotação cheia. Talvez meu pensar fosse esse por nunca ter sentido falta do danado do aconchego.
Em casa, se você não entende muito bem o que alguém quer lhe dizer, há uma verdadeira mobilização em torno do que aquele pobre coitado quer: dizem-se sinônimos, se não der se tentam os antônimos, fala-se inglês, espanhol, chinês, gestos pra todos os lados até que finalmente rola aquele entendimento buscado e a felicidade em se compreenderem contagia, vira logo piada de mesa, marca de amizade.
Aqui não. E não digo isso em menosprezo pelo carioca, pelo fluminense ou pelo Rio de Janeiro. Digo em relação à falta de cordialidade que existe numa cidade grande. Ora, podem dizer alguns, o que você esperava saindo de uma cidade pequena como a do Sol para uma metrópole de 6 milhões de habitantes? Eu pediria desculpas pela minha ingenuidade, mas acho que ser cortês, ser educado, ser acolhedor é algo inerente ao ser humano. É algo tão básico como andar, respirar. Sinceramente, não me comove nem me convence esse argumento de que aqui é uma selva de pedras. Desculpa de amarelo é comer barro, como (lindamente) se diz na terra de Câmara Cascudo.
Não há esforço da parte dos outros em entendê-lo. Se você diz "arrodear", eles nunca darão a volta e ficarão vagando em círculos até que você "traduza" seu bom português. "Chapa" por aqui é qualquer coisa, menos dentadura, por mais que você esteja apontando para os dentes e com uma caixa de Corega na mão. Não espere estar em um elevador e entrar alguém que vá cumprimentá-lo: é chá de costas na certa, seja no elevador do seu prédio ou do trabalho; seja com roupas modestas ou indumentárias pomposas.

Engraçado que aqui eles usam o artigo definido antes do seu nome, como se você fosse único: “esse é O Ricardo". Doce ilusão. Deveriam substituir por "um", ficaria adequado. As pessoas aqui parecem ensimesmadas o tempo inteiro. Talvez por isso a taxa de suicídio daqui seja maior. Talvez a de violência. Quem sabe os muros de lindos prédios históricos se encontrem pichados por não ter tido,o infeliz, alguém que tentasse o entender, lhe dar um sonoro boa noite, um pequeno sorriso.
Que bom costume o dos nordestinos de ainda saberem se cumprimentar, de saberem receber bem. De sorrir e acolher. Não é pela beleza do solo norte-rio-grandense que falam que vivemos onde eles passam férias: é esse calor humano. Que nunca morra nosso jeito do mato e que sirva de exemplo o nosso comportamento para essa gente truncada.
Bom dia não custa nada

Explicando o nome do blog (e o propósito dele)

Antes que venham me perguntar o por quê da escolha do nome "Rocha do Marcelo", eu me adianto e lhes digo.

Os que me conhecem geralmente me identificam como Marcelo Rocha, e é assim que me apresento. O que nem todos sabem é que meu nome mesmo é Marcelo da Rocha.

Pois bem. Tenho a intenção de fazer desse blog um sítio (na acepção original da palavra que bem quer dizer "lugar", e não endereço eletrônico) onde eu possa dar arrimo aos meus textos, devaneios e vivências. Será a minha rocha: a rocha do Marcelo e veio daí a ideia do trocadilho com meu nome.

Espero leitores críticos, no bom sentido dessa palavra, que me ajudem e se disponham a concatenar pensamentos e aprimoramentos pessoais.

Bem vindos à Rocha!