terça-feira, 6 de setembro de 2011

Entre copos (I)

Fecha as janelas da sua casa e apague as luzes. Eu vou te levar embora. Agora você vai viver comigo (a frase).

E então você se pega se achando a pessoa mais sozinha do mundo, em tempo de se arrebentar em choro (o momento).

Você (a pessoa).


Eu não tinha ideia de que as coisas começariam assim. Ou isso foi o prelúdio do fim? Não sei. Hoje em dia é tudo uma nuvem.

A Copacabana em que eu vivia naqueles tempos era uma névoa constante. Nessa época (assim como minha memória dos acontecimentos passados é hoje em dia) a área andava encoberta por um nevoeiro que não cessava. Os meteorologistas não achavam explicação e aquela massa compacta de vapor impregnava o bairro. Parecia que a Princesinha do Mar, tinha, enfim, voltado a viver no fundo do oceano.

Eu, que pouco entendo de clima e tempo, sabia muito bem aquilo que os cientistas não entendiam: o Rio de Janeiro ria de mim. Eu, que já vinha me sentindo sufocada, vivendo de afogamentos profundos e respiradas sutis agora literalmente vivia num mundo submarino. Era a cidade que se juntava ao coro dos que me achavam um fracasso. Aliás, eu mesma me achava ridícula.

Morando num quarto num prédio cheio de velhos e gringos, recém desempregada e, como cereja do bolo, com um coração tão despedaçado quanto um copo atirado de cima do Corcovado. Angustiada. Eu sabia que não ia adiantar procurar emprego: eu era uma péssima administradora. Eu não sei nem porque fiz aquele curso. Eu queria ser atriz. Há algo mais piegas que morar no Rio e querer ser atriz? Tem. Ser tudo isso e ainda encontrar-se devastada por um amor bandido que me roubou a alma. Queria eu ter pacto com o demônio pra que ele ficasse com minha alma. Acho que eu estaria melhor se ela fosse vendida ao capeta do que entregue nas mãos de quem eu a entreguei.

Desci e andei até a Júlio de Castilhos e lá estava o velho Eclipse que nunca fecha, com seu piano irritante e seus garçons sonolentos. Minha insônia me fez ser uma cliente assídua nas madrugadas bolorentas do meu quarto.

-Sabia que ia lhe ver aqui.

Olhei pra esquerda reconhecendo a voz, mas sem conseguir ver muito bem através da nevoa.

-Não tô bem... Não aguentava mais o quarto.
-Vamo lá em cima comigo. Fecha as janelas da sua casa e apague as luzes. Eu vou te levar embora. Agora você vai viver comigo.
- Ah é? - ri. - Obrigado por chamar aquele cafofo de casa e pela proposta, digamos, indecente. Mas eu não quero levar pra sua casa toda a minha tristeza. Iria ocupar seu apartamento inteiro.
-Eu não tô brincando.

Já estávamos frente a frente e eu via no seu olhar que não era mentira. Esses olhos tão escuros que às vezes me dragam pra dentro deles.

Daniel sempre foi meu melhor amigo, talvez a pessoa que me conhece melhor, mas, mesmo com tantos anos, ele ainda me parece uma esfinge que sempre me devora por que eu nunca consigo decifrá-lo.

-D, você sabe o quanto eu aprecio as coisas que você faz por mim e tudo o que você já fez, mas isso é demais. Fique tranquilo que eu vou arrumar um empr...
-Você não vai - disse ele antes que eu pudesse terminar - Você sabe que não vai. 
-Vamos sentar que eu tô morta. Preciso de uma dose de vodca.

Daniel e eu fomos pra nossa mesa tradicional, o mais longe possível do piano e ele pediu duas doses de vodca e suco de goiaba como bebíamos desde que começamos a beber, por volta dos nossos 15 anos.

-Quando será que a gente vai parar de passar vergonha pedindo esse mesmo drink que ninguém além de nós bebe?
-Não mude de assunto. Não deu certo, né?
-Não. Tá tão assim na minha cara?
-Não. Você continua com a mesma cara redonda de sempre. Mas eu conheço você. 
-Você me assusta.
-Você me irrita.
-E você ainda quer que eu vá morar com você.
-Eu tomei uma liberdade...

Daniel disse isso e fitou o prato e eu sabia que ele tinha feito algo que eu não ia gostar.

-Fale.
-Ofereci o dobro do que você paga ao dono do seu apê e ele deve te comunicar amanhã que não vai renovar mês que vem.

O garçom chegou com a bebida no exato momento em que eu ia dar um tabefe na mesa e por isso me contive. Quando ele saiu eu disse entre dentes.

-Você não...
-Eu sim e tá feito e se você não for morar comigo trate de buscar outro lugar pra viver porque seu cafofo tá alugado.
-D, você sabe que eu não conseguiria nenhum lugar desempregada...
-Sei, claro.
-D, seu escroto.
-Um brinde aos novos roomies.
-Txin-txin.

Daniel era assim. A luz da minha vida. Bebemos uma garrafa inteira de Wyborowa que ele pagou e foi me deixar na porta do apartamento dizendo que viria de manhã pegar as coisas comigo. Não tenho como ficar com raiva dele por muito tempo. Na verdade não posso. Não sei se outra pessoa teria tanta paciência pros meus desatinos.

Fechei a porta e parece que os pensamentos que eu tinha esquecido no Eclipse estavam me esperando acordados. A saudade fez questão de apontar o porta-retrato na cabeceira da cama. O desejo me mostrou a camisa de Otávio que eu usava de pijama. A maldade me fez ver na tela do computador que eu deixara ligado o e-mail que tinha lido antes de sair.

Sentei pra desligar o notebook e quando já estava quase me entregando à derrota de novo, meu celular vibra e era Daniel "Aborde cedo" com os constantes erros que o corretor ortográfico insistia em colocar no seu português perfeito. Fiquei esperando a mensagem seguinte porque ele sempre se corrigia e ao invés disso veio um "Te amo, monkey" apelido "carinhoso" que ele arranjou pra mim. Um raio de sol invadiu o quarto. Olhei pela janela e começava a alvorada.

O nevoeiro se dissipara.

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