Toda uma novela de Manoel Carlos (a frase).
Quando a morte se torna uma ótima alternativa (o momento).
Daniel (a pessoa).
Filho da puta.
Fi-lho-da-pu-ta!
Era tudo o que eu conseguia pensar todos os dias de manhã quando acordava naquele quarto minúsculo que eu ainda tinha que dividir com alguma gringa fedorenta de passagem.
Um mês. Um mês inteiro vivendo num hostel xexelento na Barão da Torre por causa de um fi-lho-da-pu-ta.
Quando penso na cara do meu ex-locador quando fui tentar renegociar o apartamento da Galeria Alaska em que eu morava antes de me mudar pra casa de Daniel meu sangue ferveu.
O apartamento não havia sido alugado por ele. O ex-locador nem sequer conhecia Daniel e achava que eu mesma era quem tinha desistido do lugar que agora era ocupada por uma atriz iniciante que estava com uma peça “B” em cartaz no teatro Café Pequeno.
Desgraçada. Pegou meu apê e ainda estava na profissão que eu sonhava.
Mas não podia desviar minha raiva pra ela. O culpado disso foi Daniel.
Não nos falávamos desde que eu havia deixado o apartamento dele. Daniel a princípio me deixou em paz, mas depois de duas semanas não parava de ligar, mandava mensagens e eu soube por Leo, quando fui ao Eclipse pagar minha conta, que ele estava batendo ponto no bar quase todo dia.
Morando em Ipanema ir ao Eclipse tornou-se complicado pela distância. Tudo bem que não é assim tão longe, mas a cidade está cheia de bares.
Arranjei um emprego provisório numa livraria onde eram feitos saraus todas as quintas. Isso me possibilitou, de alguma forma, demonstrar minha veia artística interpretando alguns poemas de minha autoria ou poesias de Fernando Pessoa, de quem sempre fui fã.
Numa noite daquelas apareceu um diretor de teatro de ar meio soturno, com uma barba tão bem feita e fina ao redor do rosto que mais parecia uma moldura naquela face branca. Me deu seu cartão e pediu pra que eu o telefonasse pra nos encontrarmos.
Achei que minha vida começava a tomar um novo rumo. Novo bairro, novo emprego, novos bares, novas expectativas.
Velhos fantasmas.
Numa tarde qualquer, abri meu e-mail na livraria e, além dos e-mails de praxe de Daniel, havia um de Otávio Mendes “<sem assunto>”, mas que pra mim já era toda uma novela de Manoel Carlos com final feliz e casamento de metade dos personagens da trama.
Esperei o expediente acabar e corri pra casa desarvorada. Abri o notebook ainda em pé e aquela tela do Windows carregando parecia uma tortura chinesa. Daniel dizia sempre pra que eu comprasse um Mac, mas de MAC pra mim bastava minha maquiagem.
Quando enfim consegui abrir o navegador e entrar no e-mail, parecia que o inverno tinha chegado e se alojado no meu ventre. Eram cinco letras e um pedido: “Casei. Me deixe em paz”.
Senti minha cabeça girar e vi o chão subir pra me dar um soco. Quando acordei a francesa que naquele tempo ocupava a outra cama me batia de leve no rosto e dizia alguma coisa que eu não entendia. Daniel falava francês, tinha morado em Lyon. Eu nunca me interessara pela língua, a considerava meio esnobe. Daniel casou. Como foi que ele não me avisou que ia casar? Aliás, foi ele mesmo?
Senti a água fria sendo jogada no meu rosto e voltei a mim com um susto e a lembrança doída da realidade. Não havia sido Daniel. Foi Otávio. Afogamentos profundos e respiradas sutis. A vida sempre me tratava assim, me oferecendo uma mão pra poder ter o prazer de me dar uma rasteira.
Levantei do chão e senti o gosto quente de ferro na boca. Sangue. Primeiro achei que havia mordido o lábio, mas a dona do hostel que estava com o copo vazio na mão e viera ao ouvir os gritos da francesa me disse com um sotaque espanhol:
- Hija, rompiste um dente.
Quebrei um dente. Procurei o notebook para tentar reler a mensagem e me certificar de que aquilo não fora um pesadelo, mas o maldito carteiro eletrônico de má notícia jazia no chão em frangalhos. Tão despedaçado quanto um copo atirado de cima do Corcovado. Três coisas quebradas em cinco minutos: um dente, um computador, uma alma.
Minha vida era um círculo viciado. Existe um círculo viciado? Uma roleta que só lhe dá resultados negativos quando você aposta todas as suas fichas noutro número?
Cinco letras e um pedido. Era tudo o que eu tinha, o que eu recebi em troca de toda minha devoção. “Casei”. Cinco letras. Melhor seria se ele tivesse escrito “matei”. São também cinco letras, mas pelo menos eu não teria que viver com essa dor.
O quarto já estava apinhado de curiosos e outros estavam espreitando da porta. A espanhola dona do hostel me abanava com um leque que ela havia tirado do meio dos seios e foi quando senti o vibrar do celular. Olhei no espelho e lá estava aquele buraco. Não o do dente. Esse pouco me importava.
O buraco que eu via era no meu peito, era na minha alma. Buracos tão escuros que me assustavam. Tão escuros que às vezes me dragam pra dentro deles.
O olhar de Daniel. Seus dois buracos negros que sempre me engoliam, me envolviam nos seus mistérios.
Lembrei-me do celular que vibrava incessante no bolso da farda da livraria. Era ele. Meu melhor amigo. Minha guarita.
- Monkey, até que fim...
- Daniel.
- Monkey? Que voz...
- É o Otávio.
- Natália, onde você tá?
- Barão da Torre, 107.
- Desça.
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