“Play it again, Sam” (a frase).
Viver o presente com quem quer viver de passado (o momento).
Otávio (a pessoa).
Eu não tinha feito nenhuma proposta pro locador de Natália. A verdade é que eu não fazia a menor ideia de quem era o dono do cafofo onde ela vivia.
Mas eu sabia muito bem que ela estava desesperada e uma pessoa desesperada se apega a qualquer fio de esperança que se desenlace na sua frente.
Já fazia uns 20 dias, eu acho, que nós estávamos morando juntos. Não foi nenhum problema pra ela se adaptar, afinal nós praticamente crescemos aqui. Meus pais eram os donos e eu assumi o apartamento da Joaquim Nabuco quando eles resolveram se mudar pra Geribá, depois de aposentados.
Natália sempre foi a filha que minha mãe não teve e era frequente sua presença em nosso lar. A mãe dela fugiu com um nordestino que trabalhava num circo quando ela ainda era um bebê e a deixou com o pai, comerciante de materiais de construção, já com seus 50 anos quando a teve.
Ela adorava recitar essa tragicomédia, muitas vezes com alegorias criadas por sua mente fértil, para quem qualquer um, como se a história por si só já não fosse bastante bizarra.
A verdade era que ela pouco se importava com a mãe que nunca conheceu e eu começava a achar que isso era para ela era a melhor coisa que havia em seu currículo.
O pai de Natália era um grande amigo do meu pai e os dois tinham negócios juntos e, como éramos quase da mesma idade, era comum que o pai dela a deixasse conosco. Falecera fazia pouco tempo deixando o negócio nas mãos dela. Não preciso dizer que ela gastou até a última pataca em festa.
A verdade é que Natália não teve boa criação. Ela era filha do mundo, apadrinhada pela vida. Flertava constantemente com o perigo. Tinha paixões tão imensas que afugentava a todos pela sua sede de viver. As pessoa não entendiam isso e a consideravam meio louca. Eu a achava brilhante. Ela era brilhante.
- Se você continuar dormindo até o meio dia nunca vai arrumar nada pra fazer na vida.
- Tá vendo porque eu não queria vir morar aqui? Você vai ficar agindo como papai?
- Não, mas eu sou seu amigo e preciso dizer a você as verdades que você não quer ver. Eu sei que você não vai voltar pra Administração, mas alguma coisa você vai acabar tendo que fazer. Por que você não vai naquela escola para atores que você viu que funcionava na Nossa Senhora com a Santa Clara?
- Francamente, D, você acha que há alguma chance de eu ser atriz nessa altura do campeonato? Eu não sou mais nenhuma boneca.
- Regina Duarte tá aí pra isso.
Ela me arremessou uma almofada da qual eu desviei sem problemas.
- Me chamando de velha, ein?
- Monkey, tô tentando te animar. Você tem que fazer alguma coisa.
- Você podia me ajudar de verdade, né? Não é possível que não haja ninguém no jornal que não tenha contatos na TV.
- Eu já te disse que tem, mas o que você quer que eu diga? “Tem uma amiga minha formada em Administração que quer ser atriz. Não ela não tem experiência de tablado. Não, ela não toca nenhum instrumento. Dançar? Só se ela estiver muito bêbada” Você precisa começar a fazer alguma coisa pra que alguma coisa aconteça!
Disse isso e notei que tinha tocado no seu calcanhar de Aquiles. Natália era do tipo de pessoa que tinha uma passividade agressiva monstruosa. Ela esperava muito que as coisas caíssem no seu colo. Acho que por ter sido criada por um pai já muito velho e que sempre foi mais avô do que pai... A verdade era que me impressionava uma pessoa tão inteligente e bonita nunca ter feito nada sério na vida. Ela era uma aventureira.
Mudou de assunto como era do seu feitio quando o laço virava nó.
- Vou no Eclipse. Tá afim?
- Tenho uma pauta amanhã muito cedo pra cobrir. Bebida não vai solucionar seus problemas.
- Eu lhe fiz um convite amigável, mas você tem que tacar tudo na minha cara sempre, né? Você não sabe o que é ter um coração em frangalhos.
- Eu só quero lhe dizer que o mundo não é seu chofer. Ele não vai ficar te esperando até que seu “funeral particular” acabe e você queira enfim sair do seu “luto”. Não tente tapar o sol com a peneira. O máximo que você consegue com isso é um bronzeado quadriculado.
Natália levantou, veio em minha direção e disse:
- Tá vendo porque eu não queria vir pra cá, Daniel? Eu nunca precisei de ninguém pra me dizer o que fazer da vida.
- Porra... Tô vendo como deu certo, ein? Tá distribuindo dólares como quem joga confete em festa de carnaval! Sem falar do total sucesso da sua vida amorosa.
Girou nos calcanhares e falou de costas pra mim, no melhor estilo “novela mexicana do SBT na quadragésima reprise”.
- É... Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ia ser assim – ela disse enquanto catava bolsa, chave e um maço de Camel com um isqueiro preso entre o plástico e a caixinha – Você ia terminar jogando tudo na minha cara.
Senti sua voz embargar, mas eu sabia que ela era meio que como uma égua selvagem, que precisava de rédeas curtas para ser domada.
- Monkey, é pelo seu bem. Nesse tempo que você tá aqui a única coisa que você faz é dar plantão no seu e-mail pra ver se há sinais de Otávio, fumar e ir no Eclipse. Por falar nisso, como você tá pagand...
Virou-se e me cortou com uma fala modulada, meio mecânica, meio abusada.
- Leo tá pondo na conta e eu prometi pagar a ele assim que eu puder.
- E quando vai ser isso?
- Ah Daniel, quer saber? Não enche, bicho! Tá de saco cheio de mim? Devolve a porra do meu apartamento! Não te pedi nada disso! Você que fez questão que eu viesse pra cá.
- Você não ia ter como...
Natália levantou a voz e eu vi as veias do seu pescoço de retesarem.
- IA! IA SIM! Nem que eu tivesse que dar pro primeiro cara que eu encontrasse na Atlântica! Porra, você me trata como se eu fosse uma completa inútil! Sabe qualé? Tô caindo fora! Não aguento mais seus olhares enviesados e essa sua compulsão por controlar a minha vida.
Bateu a porta. Passou a chave.
Pensei em ir atrás dela, mas seria em vão. Naquela noite ela não me daria mais nenhuma palavra. Era melhor esperar a égua selvagem vadiar pelo campo da ilusão e recolhê-la embriagada mais tarde no Eclipse, quando Leo ligasse dizendo que ela tava sentada no piano dizendo “Play it again, Sam” como costumava fazer quando estava alta e achava que Copacabana era o Marrocos.
Natália estava se perdendo por causa de Otávio e eu não podia deixar que ele a roubasse de uma vez por todas de mim.
Era hora de agir.